prtsPAAKAT: revista de tecnología y sociedadPAAKAT: rev. tecnol.
soc.2007-3607Universidad de Guadalajara, Sistema de Universidad
Virtual10.32870/Pk.a10n18.47200007TELCHAKUma rede sociotécnica à luz do paradigma da dádiva: análise do
aplicativo de empréstimo de objetos Tem Açúcar? no Rio de
JaneiroA sociotechnical network in the light of the gift paradigm:
analysis of the object loan app Tem Açúcar? in Rio de JaneiroUna red sociotécnica a la luz del paradigma del don: análisis de la
aplicación de préstamos de objetos Tem Açúcar? en Río de
Janeiro0000-0003-1130-4563BritoNatalia da Silva Caldas1*0000-0001-8733-7885GoiaMarisol Rodriguez2**Fundação Getulio Vargas, BrasilFundação Getúlio VargasFundação Getulio Vargas, BrasilBrazilFundação Getulio Vargas, BrasilFundação Getúlio VargasFundação Getulio Vargas, BrasilBrazil
Mestre em Gestão Empresarial pela Escola Brasileira de Administração Pública
e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EBAPE/FGV), Graduada em
Comunicação Social pela Universidade Veiga de Almeida (2005). ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-1130-4563/print natalia.caldas@gmail.com
Doutora em Antropologia Urbana pela Universitat Rovira i Virgili (Catalunha,
Espanha), Mestre em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Professora da Escola Brasileira de Administração
Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EBAPE/FGV). ORCID:
http://orcid.org/0000-0001-8733-7885 marisol.goia@gmail.com
28052020Mar-Aug20201018e4721111201926022020Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative
CommonsResumo
Este artigo realiza uma análise socioantropológica do Tem Açúcar?, um aplicativo
criado em nome do consumo colaborativo, destinado a empréstimos, doações e troca
de objetos entre vizinhos das grandes cidades. Situando a discussão no contexto
das novas mobilizações coletivas organizadas em nome da solidariedade, adere-se
à proposta de utilizar o marco interpretativo da dádiva, herdado da escola
socioantropológica francesa, para uma melhor compreensão do fenómeno. Busca-se
compreender as experiências e percepções de seus usuários e refletir sobre os
aspectos que potencializam e limitam o propósito dessa rede sociotécnica no Rio
de Janeiro, Brasil. Adota-se a fenomenologia interpretativa, incluindo
observação, interação e entrevistas com usuários para descrever e analisar a
aderência aos valores centrais do aplicativo, o sentido atribuído aos tipos de
objetos que circulam, a forma como ocorrem os encontros e o papel da confiança
para a viabilidade da reciprocidade. Além de um forte compromisso com a causa da
redução do consumo e do fomento da colaboração e confiança entre vizinhos, o
princípio da dádiva é defendido nessas práticas, que devem ser entendidas sob um
enfoque anti-utilitarista. Ao mesmo tempo, a confiança é essencial para a
materialização das trocas e sua construção depende da avaliação social do
usuário, sua reputação e comentários em seu perfil.
Abstract
This paper carries out a socio-anthropological analysis of Tem Açúcar?, a mobile
application created in the name of collaborative consumption, intended for
objects loans, donations and exchanges between neighbors of large cities.
Placing the discussion in the context of the new collective mobilizations
organized in the name of solidarity, it adheres to the interpretative framework
of the gift, inherited from the French socio-anthropological school, for a
better understanding of the phenomenon. It seeks to understand the experiences
and perceptions of its users and reflects on the aspects that enhance and limit
the purpose of this socio-technical network in Rio de Janeiro. Interpretative
phenomenology is adopted, including observation, interaction and interviews with
users to describe and analyze the adherence to the app values, the types of
objects that circulate, the way in which encounters occur and the role of trust
in the viability of reciprocity relationships. In addition to a strong
commitment to the cause of reducing the consumption and the promotion of
collaboration and trust among neighbors, the principle of the gift was verified
in this sociotechnical network in practices that can only be understood under an
anti-utilitarian approach. At the same time, trust is an essential factor for
the materialization of exchanges and its construction depends on the reputation
of the user, as well as the comments of third parties on their profile.
Resumen
Este artículo realiza un análisis socioantropológico de Tem Açúcar?, una
aplicación tecnológica creada en nombre del consumo colaborativo, destinada a
préstamos, donaciones e intercambios de objetos entre vecinos de grandes
ciudades. Ubicando la discusión en la coyuntura de las nuevas movilizaciones
colectivas organizadas en nombre de la solidaridad, se adhiere a la propuesta de
utilizar el marco interpretativo del don, heredado de la escuela
socioantropológica francesa, para una mejor comprensión del fenómeno. Se busca
comprender las experiencias y percepciones de sus usuarios, y reflexionar sobre
los aspectos que potencian y limitan el propósito de esta red sociotécnica en
Río de Janeiro, Brasil. Se adopta la fenomenología interpretativa, incluyendo
observación, interacción y entrevistas con usuarios para describir y analizar la
adherencia a los valores centrales de la aplicación, el sentido atribuido a los
tipos de objetos que circulan, la forma en que ocurren los encuentros y el papel
de la confianza para la viabilidad de la reciprocidad. Además de un fuerte
compromiso con la causa de reducción del consumo y del fomento de la
colaboración y confianza entre vecinos, el principio del don es defendido en
estas prácticas, que deben entenderse bajo un enfoque anti-utilitarista. Al
mismo tiempo, la confianza es esencial para la materialización de los
intercambios y su construcción depende de la evaluación social del usuario, su
reputación y comentarios en su perfil.
Palavras-chave:Aplicativo de telecomunicaçãodádivaconsumo colaborativosolidariedadeKeywords:Telecommunications applicationsgift, collaborative consumption, solidarityPalabras clave:Aplicación de telecomunicacióndonconsumo colaborativosolidaridadIntrodução
Desde princípios do século XX, o pensamento social se deteve sobre os efeitos sociais
do acelerado processo de urbanização, advindo da industrialização e do capitalismo
no mundo moderno. Autores clássicos do que se convenciona chamar de Sociologia e
Antropologia Urbanas, como Georg Simmel, Louis Wirth, Robert Park, e pesquisadores
da Escola de Chicago, recorreram a paradigmas sociais da vida no campo, ou em
pequenos agrupamentos tradicionais, para enxergar, por contraste, as bruscas
mudanças produzidas nas (e pelas) metrópoles. O urbano passou a ser pensado como um
modo de vida, onde as identidades se tornam segmentadas, as relações face-a-face dão
lugar a relações indiretas e anônimas, os valores individualistas e utilitários
predominam sobre os valores comunais, as trocas são mediadas pelo dinheiro e, enfim,
uma nova sensibilidade, marcada por uma atitude blasé diante dos
outros e da realidade, marcaria o modelo do homem moderno das grandes metrópoles
(Simmel, 1903; Park, 1915; Wirth,
1938).
No século XXI, as disruptivas inovações das tecnologias de informação e comunicação
(Castells, 1999; 2003), não apenas permitiram que as críticas a esses princípios
do ordenamento urbano-moderno ganhassem maior visibilidade, como também
materializaram, elas mesmas, alguns processos de resistência e contestação (Tarrow, 2005; Anduiza et al., 2009; Castañeda, 2015; Soares et
al., 2019). Plataformas digitais constituem, portanto, um
cenário bastante promissor para a investigação da organização em rede movida em nome
de valores contra-hegemônicos.
Embora pesquisas venham analisando o modo como valores contestatórios e ações
políticas articulam pessoas por meio das tecnologias (Bennett; Segerberg, 2011; Castañeda,
2015; Soares et al.,
2019), ainda há um campo a ser desvendado no que se refere,
especificamente, às práticas ligadas à resistência ao mainstream
econômico e consumista, como as que fomentam, por meio de aplicativos gratuitos,
doações e empréstimos de objetos entre desconhecidos nas grandes cidades.
É nesse contexto que se escolheu abordar o aplicativo de celular Tem
Açúcar?, que se posiciona em nome do consumo consciente, da
reconstituição dos laços comunitários e da preservação do meio-ambiente. Trata-se da
plataforma de compartilhamento de bens mais difundida no Brasil, tendo alcançado
mais de 180 mil usuários (Redbull, 2019). O
aplicativo não tem fins lucrativos, opera atualmente em aproximadamente 10 mil
municípios brasileiros e registra atividades em todos os estados do Brasil, seja em
metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, seja em cidades com menor densidade
demográfica (Autossustentável, 2017).
Inspirado em plataformas de empréstimo, doação e troca de objetos, o Tem
Açúcar? foi lançado no Brasil em junho de 2014 e se baseia na premissa
de que “é melhor usar do que ter”. Fundamentado em princípios de economia
colaborativa e do consumo consciente, apresenta-se como mediador de relações de
consumo, pela troca, empréstimo ou doação entre vizinhos.
Adere-se, aqui, à proposta de usar o marco interpretativo da dádiva, herdado da
escola sócio-antropológica francesa para o melhor entendimento dos usuários desse
aplicativo (Godbout, 1998; Caillé, 1998; Martins, 2008). Os debates que articulam, contemporaneamente, o
paradigma da dádiva ao desenvolvimento tecnológico, remetem ao consumo e à economia
colaborativos (Heylighen, 2016; Harvey et al., 2014; Sutherland & Jarrahi, 2018; Acquier & Pinkse, 2017).
Ainda que se coloquem em relevo as contradições do conceito de economia colaborativa
(Acquier & Pinkse, 2017), uma de suas
ideias fundantes merece ser posta em relevo como forma de posicionar o aplicativo no
debate das redes sociais de resistência organizadas com a mediação das tecnologias.
Trata-se do maior valor atribuído ao acesso do que à
posse de bens, por meio de um sentido mais solidário na relação
com objetos e serviços. Esse sentido conta com a mediação da tecnologia para se
materializar em redes e comunidades de uso (Heylighen, 2016; Harvey et
al., 2014).
Tal como vem sendo feito em pesquisas sobre tecnologia e experiência de usuários
(Ghaffari & Lagzian, 2018) este
estudo adota uma abordagem fenomenológica interpretativa para buscar compreender e
interpretar os usuários do Tem Açúcar? Após apresentar o
aplicativo, retratando a motivação de sua idealizadora e sua dinâmica de
funcionamento, discutem-se, com base em percepções e experiências, aspectos que
potencializam e que limitam o propósito dessa rede sociotécnica (Latour, 2005) para a realização de empréstimos,
doações e trocas de objetos entre desconhecidos de grandes centros urbanos.
Afim com a literatura sobre consumo e economia colaborativos, o tema da confiança
merece um lugar especial na discussão (Acquier &
Pinkse, 2017; Heylighen, 2016,
Sutherland & Jarrahi, 2018), valor
que se acentua quando se considera que a unidade de observação da pesquisa é a
cidade do Rio de Janeiro, uma das mais desiguais e violentas do mundo.
Buscou-se conhecer e analisar questões objetivas e subjetivas sobre as interações que
ocorrem por meio do aplicativo, tais como a adesão ao propósito do Tem
Açúcar?, a forma como ocorrem os encontros, os tipos de objetos que
circulam e o papel da confiança. Que aspectos operam favorável e desfavoravelmente
para o propósito do aplicativo? De que modo pessoas e objetos são percebidos e
avaliados? A esse respeito, busca-se atentar para a forma como o princípio da dádiva
é reconhecido nessas interações. Por fim, nota-se o modo como, por meio do
aplicativo, são estabelecidos laços sociais entre os seus usuários, para além da
interação envolvendo os objetos.
As redes sociotécnicas e o paradigma da dádiva
Em um dos trabalhos sociológicos pioneiros sobre as características do modelo de
sociedade que emerge com o avanço das Tecnologias de Informação, Castells (1999) se refere às redes como as
verdadeiras unidades operacionais da economia e da sociedade, merecedoras, portanto,
de observação e análise. De fato, nas últimas décadas, os debates acadêmicos sobre a
relação tecnologia e sociedade deram grande visibilidade ao modo como, por meio da
tecnologia, são formadas redes de diferentes tipos e naturezas (Latour, 2005; Stalder, 2005; Bennett & Segerberg,
2011; Castañeda, 2015; Heylighen, 2016; Soares et al., 2019).
A importância atribuída às redes torna cada vez mais importante o estudo dos
dispositivos e desenvolvimentos tecnológicos, diante da sua capacidade de agir sobre
a realidade, produzindo mudanças ou efeitos sobre a sociedade (Latour, 2005; Heylighen,
2016; Harvey et al.,
2014; Soares et al.,
2019). Tais dispositivos são entendidos por Latour (2005) como mediadores, como veículos que acionam outros
mediadores e se orientam para a ação, tendo, portanto, poder de ação -diferentemente
dos intermediários, que apenas transportam sem produzir efeitos-.
Interessado pela compreensão da organização contemporânea no modelo de redes
horizontais, Martins (2010) pontua a
necessidade de descolonizar os marcos interpretativos das Ciências Sociais para dar
conta das motivações dos indivíduos pela associação e pela solidariedade, em novas
formas de mobilizações coletivas. Estas motivações se materializam nas redes
sociais, pequenos sistemas dinâmicos que funcionam como reguladores de acordos entre
indivíduos e grupos, em nome da solidariedade (Harvey et al., 2014).
O paradigma utilitarista individualista, predominante na perspectiva das
network analysis, seria insuficiente para compreender esses
sistemas, já que os entende como formas de mobilização de recursos e informações em
torno de objetivos estratégicos e interessados (Martins, 2010). Isto porque o sentido utilitarista de rede circunscreve
a ação humana a partir de mecanismos de causalidades de ação, ancorando a moral dos
comportamentos no cálculo e no interesse, sem ter “uma compreensão mais solidária,
generosa e humanista do fenômeno” (Martins, 2010, p.
404). É para sanar essa lacuna que o autor defende o “paradigma da
dádiva”, herdado da escola sociológica francesa, como forma de entender novas formas
de solidariedade articuladas em redes sociais que são, conforme Arnold-Chatalifaud, Thumala e Urquiza (2007),
experiências inéditas de colaboração coletiva, fundadas na individualidade e na
contingência.
Cabe dizer que a reflexão específica sobre a dádiva se liga à importância adquirida,
no terreno da Antropologia, pela discussão da economia e das trocas nos povos
tribais, ganhando visibilidade na década de 1920. Os estudos de Bronislaw Malinowski
e de Marcel Mauss, com suas respectivas obras “Argonautas do Pacífico Ocidental”, de
1922, e “Ensaio sobre a Dádiva”, de 1925, são os marcos desse debate. Tais trabalhos
evidenciaram a complexidade dos sistemas de troca nas sociedades tradicionais, sua
relação com o ordenamento social e com os princípios que fundamentam os contratos
estabelecidos entre grupos. O debate contribui, até hoje, para relativizar as
modalidades ocidentais e “modernas” da Economia e do Direito.
Uma das principais contribuições é o reconhecimento que Mauss realiza de um princípio
social subjacente a diferentes modalidades de troca. Trata-se do princípio de dar,
receber e retribuir, que tem caráter simultaneamente obrigatório e voluntário e é
estruturante das relações sociais. Muito embora Mauss reconhecesse diferenças entre
as modalidades de troca nas sociedades tribais, ancoradas no princípio da dádiva, e
aquelas da economia moderna, o autor se comprazia ao ampliar o que entendia como
“sobrevivências” culturais tradicionais.
Entre a economia relativamente amorfa e desinteressada, no interior dos
subgrupos, que regula a vida dos clãs australianos ou norte-americanos, de um
lado, e de outro, a economia individual e do puro interesse que nossas
sociedades conheceram, ao menos em parte, desde que essa economia foi descoberta
pelas populações semíticas e gregas, entre esses dois tipos dispôs-se uma série
imensa de instituições e de acontecimentos econômicos, e essa série não é
governada pelo racionalismo econômico do qual se costuma fazer a teoria (Mauss, 2003, p. 306).
O paradigma antropológico da dádiva considera que as dádivas (objetos, bens,
serviços, etcetera) em circulação nutrem alianças e relações pelo endividamento
positivo e mútuo entre as pessoas. Nesse sentido, os indivíduos são interdependentes
e relacionados por meio de bens (as dádivas oferecidas) que circulam e que
simbolizam o “espírito” do doador e seu grupo (Mauss, 2003).
Sob a leitura de Caillé (1998), Marcel Mauss
teria indicado que o que é trocado -mais do que objetos, presentes, festas,
braceletes- são símbolos. Símbolos da presença de grupos e símbolos das necessidades
de cada membro e de todos. Símbolos das alianças e das necessidades de alianças.
Mauss teria revelado que nenhuma sociedade humana pode edificar-se exclusivamente
sobre o registro do contrato e do utilitário, insistindo, ao contrário, em que a
solidariedade indispensável a qualquer ordem social só pode surgir da subordinação
dos interesses materiais a uma regra simbólica capaz de transcendê-los. A “obrigação
paradoxal da generosidade” constituiria, assim, a base dessa moralidade, uma moral
que manda dar de modo livre e obrigatório, simultaneamente (Caillé, 1998).
É no seio dessa discussão que Martins (2010)
defende as perspectivas sociológicas anti-utilitaristas, formadas ao longo do século
XX, como desdobramentos da teoria da dádiva, como adequadas para a interpretação de
fenômenos contemporâneos de mobilização solidária em rede. Tal paradigma insiste em
valorizar a força da associação humana como um poderoso recurso explicativo dos
movimentos coletivos e espontâneos, o que permite compreender formas de construção
de esferas públicas democráticas a partir da sociedade civil, fora das esferas do
Estado e do mercado.
Tecnologia, práticas colaborativas e confiança
Os debates que articulam, contemporaneamente, o paradigma da dádiva ao
desenvolvimento tecnológico, remetem ao consumo e à economia colaborativos (Heylighen, 2016; Harvey et al., 2014; Sutherland & Jarrahi, 2018; Acquier & Pinkse, 2017).
A economia colaborativa é usualmente pensada como um modelo econômico construído ao
redor de redes conectadas de indivíduos e comunidades (Sutherland; Jarrahi, 2018; Botsman & Rogers, 2011), entrando neste ponto a mediação ou a
intermediação da tecnologia (Latour. 2005).
Hamari et al. (2016)
conceituam o consumo colaborativo como fenômeno essencialmente tecnológico, em que
tanto a oferta quanto o uso de recursos se veem intimamente conectados por redes de
pares, manifestando-se através da obtenção, doação ou partilha do acesso a bens e
serviços por uma comunidade online.
Belk (2010); 2014) aborda o consumo e a economia colaborativos como ação e processo
de distribuição do que se possui, e também como ação e processo de recebimento de
coisas de outras pessoas para uso. Como resultado, uma identidade também é
compartilhada, seja entre vizinhos de prédio, bairro, cidade ou aplicativo, pelo
senso de pertencimento e ainda, de solidariedade no consumo colaborativo (Belk, 2010; 2014).
Ainda que se coloquem em relevo as contradições do conceito de economia colaborativa
(Acquier & Pinkse, 2017), uma de suas
ideias fundantes deve ser colocada em relevo. Trata-se do maior valor atribuído ao
acesso do que à posse de bens, uma proposta de
repensar o uso de objetos e serviços através de um modelo econômico organizado em
redes e comunidades (Heylighen, 2016; Harvey et al., 2014). Nesse
sentido, o campo de aplicação desse novo modelo é grande e leva em conta o conjunto
de procedimentos de troca, de partilha ou empréstimo de recursos entre pessoas ou
empresas (Sutherland & Jarrahi, 2018).
No que se refere à relação entre dádiva e tecnologia, deve-se mencionar a noção da
dádiva high-tech, que se desenvolveu no contexto do
compartilhamento de arquivos via online e no movimento de
software livre (Barbrook,
1998; Stalder, 2005). Essa
corrente se caracteriza pela cooperação livre entre produtores e consumidores de
conteúdo, associados sem que haja espera por contrapartida monetária (Harvey et al., 2014). O
reconhecimento, nesse caso, passa pela identificação de talentos e méritos dos
pares, de maneira igualitária. É possível compreender essa cultura (Stadler, 2005) como uma combinação entre
coletivismo e individualismo, na qual a capacidade de doar é, precisamente, o que
torna o indivíduo um virtuoso aos olhos de seus pares (Bergquist & Ljungberg, 2001).
O conceito de confiança é central nos debates sobre paradigmas de trocas mediadas por
plataformas digitais. A ligação direta entre pares é feita por um terceiro que, sem
tomar parte na troca, serve de mediador (Heylighen,
2016). Nos debates sobre trocas monetizadas mediadas por dispositivos,
argumenta-se que a relação entre consumidor e empresa é substituída por uma relação
tripla, na qual um dispositivo faz um papel de intermediário na transação. Nesse
sentido, as plataformas normalmente apostam na reputação pessoal e buscam
estabelecer a posição de elemento que garante a transação, resolvendo a questão da
incerteza e promovendo o engajamento na relação por meio da plataforma (Möhlmann, 2015; Sundararajan, 2016).
A fim de construir confiança suficiente, plataformas colaborativas têm como opção
reforçar a confiança na organização, de modo a facilitar a transferência desse valor
em direção a terceiros (Sundararajan, 2016).
As plataformas oferecem ferramentas que permitem aos usuários mais reticentes
validar elementos que certifiquem a segurança no procedimento.
Segundo Botsman e Rogers (2011), a confiança é
o principal elemento da economia colaborativa. Um dos principais desafios de manter
práticas e modelos colaborativos em funcionamento é, portanto, desenvolver e manter
a confiança em plataformas digitais e, por meio delas, também nos seus usuários.
Metodologia
Entende-se, com Martins (2010), que as
abordagens interpretativas fenomenológicas são pertinentes para avançar no debate
sobre as redes sociais mediadas por dispositivos tecnológicos porque permitem
colocar em relevo as percepções da realidade humana, as linguagens e as narrativas
que tecem significações para a vida social. De fato, como se pode notar na
literatura internacional, a adoção da abordagem fenomenológica vem crescendo na
produção científica especializada em tecnologia e experiência (Ghaffari & Lagzian, 2018; Symeonides & Carrie, 2015; Saraswat
2012; Galehbakhtiari & Tahmours,
2015; Chan et al.,
2015).
A fenomenologia interpretativa encoraja os pesquisadores a elucidarem o modo como os
participantes criam um sentido para seus mundos pessoais e sociais e dão significado
a suas experiências (Madsbjerg, 2017). Em
termos ontológicos, a fenomenologia pressupõe uma integração entre o fenômeno
estudado e o observador, ocupando a intenção do pesquisador um importante papel na
criação de conhecimento, assim como nas implicações de seu estudo (Smith, 2004).
Com base fenomenológica, a metodologia desta pesquisa é qualitativa, descritiva e
exploratória, construída a partir da inscrição direta de uma das autoras no universo
pesquisado, por meio de observações do próprio aplicativo, interações com a
plataforma e com seus usuários, e por meio de entrevistas semiestruturadas
realizadas presencialmente e remotamente com seus usuários. Não se pretende
generalizar os depoimentos e experiências observados para a totalidade de usuários
do Tem Açúcar?, mas sim, tomá-los como pontos de inflexão sobre o
fenômeno da solidariedade sob roupagens contemporâneas, entendida como resistência
ao utilitarismo, e mediada pela tecnologia.
Uma das seleções do público participante foi realizada pela própria plataforma do
Tem Açúcar?, “pedindo uma mãozinha”, ferramenta do aplicativo.
A mensagem em tom coloquial, o mesmo tom de fala utilizado pelos usuários
cadastrados, foi postada para visualização em um raio de 2,1km de um endereço
cadastrado no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro, convidando-os a participarem da
pesquisa.
Além desse convite, a segunda seleção do público participante, por motivo de
conveniência, foi a escolha de um perfil de pessoas que tivessem curtido a página do
Tem Açúcar? pela plataforma de rede social
Facebook ou interagido pelo menos uma vez pelo aplicativo, seja
solicitando algum objeto ou emprestando. Por fim, também foi possível acessar novos
entrevistados a partir de indicações realizadas ao final de cada entrevista,
conforme o método da “bola de neve”.
Deste modo, foram realizadas, no total, 9 (nove) entrevistas semi-estruturadas, sendo
6 (seis) presenciais e 3 (três) à distância que compartilharam suas experiências e
percepções sobre o aplicativo Tem Açúcar?
As conversas e o roteiro das entrevistas giraram ao redor das experiências de uso do
aplicativo, como impressões gerais, tempo de uso, critérios adotados para a
avaliação de usuários, tipos de objetos que consideram aptos, ou não, a circular,
entre outras. No início de cada encontro foi solicitado aos entrevistados que
fizessem uma breve apresentação de seu próprio perfil, com informações de idade,
escolaridade, ocupação, entre outras.
O perfil dos informantes foi de 7 mulheres e 2 homens, sendo 8 entre os 9
entrevistados com idade entre 30 e 40 anos, e 1 entrevistado com idade entre 20 e 30
anos. Pode-se dizer que a frequência de uso do aplicativo não é regular entre os
usuários. A maior parte deles ativa as notificações do aplicativo em seu celular,
consultando-as sempre que aparecem. Isto não significa que os usuários interajam
diariamente com o aplicativo, nem que tomem parte das solicitações notificadas.
Além disso, mesmo a habilitação das notificações passa por intermitências. Ainda
assim, nenhum entrevistado relatou menos de 3 trocas efetivadas e a maior parte
deles narrou ter participado de empréstimos ou doações em diferentes ocasiões.
Informações adicionais de profissão e bairro de moradia dos participantes da
pesquisa se encontram na tabela abaixo.
Perfil dos informantes
Entrevistado
Idade
Sexo
Profissão
Moradia
A
34
F
Designer
Catete
B
37
F
Designer
Botafogo
C
34
F
Pedagoga
Bairro de Fátima
D
35
F
Empreendedora
Barra da Tijuca
E
24
F
Publicitária
Leblon
F
38
F
Empreendedora
Glória
G
35
M
Publicitário
Barra da Tijuca
H
32
M
Administrador
Flamengo
I
36
F
Designer
Icaraí
Fonte: elaboração própria.
Contextualizando o aplicativo Tem Açúcar?
Eu enxergo a economia de compartilhamento como um processo inteligente,
divertido, natural e necessário para um planeta que tem recursos finitos. Para a
criação de novos bens, recursos naturais são extraídos de forma não renovável,
gasta-se energia com transporte e produção, lixo é gerado e isso impacta
socialmente trabalhadores que ganham cada vez menos -ou muitas vezes nada, o
trabalho escravo- para dar conta de uma demanda sempre crescente Camila
Carvalho - Hypeness, 2015
A história do Tem Açúcar? nasce de um incômodo sentido por Camila
Carvalho, nascida em 1989, ex-modelo, natural do Rio de Janeiro e fundadora da
plataforma. Antes de se tornar empreendedora social, foi estudante de Comunicação
Social e Artes Cênicas, para depois ingressar na carreira de modelo e trabalhar para
grandes marcas do mercado da moda. Em viagens por países como Índia e China, Camila
teve contato com a diversidade cultural e especialmente com uma visível desigualdade
social entre ocidente e oriente.
O impacto de ter vivido e convivido com essa desigualdade impulsionou suas reflexões
sobre o modo de funcionamento do capitalismo de consumo e especialmente as dinâmicas
de poder, produção industrial, política e impactos ambientais. A expansão de
consciência sobre os efeitos da economia de mercado motivou o interesse em estudar
Design em Sustentabilidade pela instituição internacional Gaia Education, e
posteriormente, a criação da plataforma em questão.
Outro elemento motivador para a criação do Tem Açúcar? foi a
percepção de que as relações de vizinhança nas metrópoles são pouco sólidas. Essa
mesma percepção havia sido fundamental para a criação de plataformas internacionais
que foram fonte de estudo e referências para o Tem Açúcar?, como a
holandesa Peerby e a inglesa Streetbank (O Globo, 2015).
Depois de passar por uma campanha de financiamento coletivo
(matchfunding) em outubro de 2016, o Tem
Açúcar? se transformou em aplicativo para smartphones
e se tornou mais acessível e responsivo. A campanha contou com o apoio da empresa
seguradora Youse e também com a contribuição individual de 395 pessoas, tendo
arrecadado R$61.562,00 (sessenta e um mil, quinhentos e sessenta e dois reais). Em
2020, a plataforma de troca opera exclusivamente como aplicativo, possuindo um total
de 180 mil usuários (Redbul, 2019).
Para fazer uso do Tem Açúcar? o usuário deve baixar o aplicativo,
disponível gratuitamente no Google Play ou na Apple
Store (conforme o tipo de aparelho celular) e se cadastrar (figura 1).
Funcionamento do aplicativo.
Fonte: Aplicativo Tem açúcar?
Na página principal do aplicativo o usuário pode descobrir quantos vizinhos na sua
área estão cadastrados e assim ter uma ideia do universo de trocas possíveis e quais
foram os pedidos mais recentes efetuados pela comunidade no seu entorno. Ainda sobre
funcionalidades, dentro do aplicativo é também possível se associar a comunidades
específicas, direcionadas a públicos particulares (comunidades de mães e pais,
comunidades de compras coletivas, etcetera), para que o usuário se mantenha mais
integrado ao que acontece nas redondezas.
Após a realização do login, o usuário pode selecionar através do
Editar Perfil o endereço onde deseja consultar vizinhos e
quantos são os vizinhos disponíveis no endereço cadastrado. As figuras 2 e 3 mostram o
exemplo de dois endereços diferentes, o primeiro com 1298 usuários cadastrados no
bairro de Botafogo, da cidade do Rio de Janeiro, e o segundo com 468 usuários
disponíveis no bairro de Santa Rosa, na cidade de Niterói, próxima à cidade do Rio
de Janeiro.
Home - Quantidade de vizinhos cadastrados - Bairro Botafogo.
Fonte: Aplicativo Tem Açúcar?
Home - Quantidade de vizinhos - Bairro Vital Brazil.
Fonte: Aplicativo Tem Açúcar?
As possibilidades de interação são variadas. É possível encontrar pedidos de
empréstimo de objetos, como por exemplo mochilão para viagem, barraca de camping,
projetor de vídeo para casamento, furadeira, livros para estudos ou então pedidos de
ajuda para montagem de armário, companhia para atividades físicas como corrida, até
doações de livros ou comidas, por exemplo papinhas de crianças (figura 4).
Tipos de interação.
Fonte: Aplicativo Tem Açúcar?
Durante todo o processo de produção da presente pesquisa, observaram-se diversas
postagens com pedidos variados dentro do aplicativo, desde doação de composteiras ou
camas, até empréstimo de itens pessoais tais como tênis, livros, lentes
fotográficas, mochilas, panelas, kefir, furadeiras e ainda pedidos de troca de
informações. Diante dessa variedade, é preciso admitir a impossibilidade de afirmar
com precisão quais itens são mais demandados através da plataforma, pois o
aplicativo não permite o acesso a esses dados.
ResultadosExperiências e percepções dos usuários
Quando perguntadas sobre como foram as experiências com o aplicativo, pôde-se
notar algumas tendências interessantes nas respostas. A maioria das pessoas
entrevistadas relatou êxito tanto na atividade de emprestar quanto na de pegar
emprestado (ou receber algo como doação), tendo duas ou mais experiências de
troca, com usuários diferentes e também repetidos. Entretanto, revelou-se que
3/9 das pessoas entrevistadas vivenciou também dificuldades em obter respostas
para seus pedidos e acabaram, de alguma forma, frustrados.
Por outro lado, 2/9 dos usuários relatou não ter conseguido concluir trocas,
seja por dificuldade de alinhamento para o encontro presencial, seja por
motivos outros (como desistência da outra parte).
Pedir emprestado eu só tentei uma vez, só que eu não obtive resposta. Se não me
engano era um daqueles quadros de música pra pendurar partitura. Então na época
eu tinha uma amiga que ia fazer um show e ela precisava desse objeto. Eu
coloquei lá no aplicativo e eu não obtive resposta, mas tudo bem (entrevistado
H, 32, Administrador, Flamengo).
Outra tendência entre as pessoas entrevistadas foi a intermitência no uso do
aplicativo, isto é, muitos afirmaram terem, em algum momento, desinstalado o
Tem Açúcar?, seja por desmotivação (gerada pelo não
atingimento de uma expectativa), seja por terem feito apenas um uso pontual do
mesmo.
As entrevistas revelaram experiências e preferências bem claras. A maioria
classificou o processo de alinhamento, agendamento e troca como tranquilos.
Todos confirmaram jornadas de troca que começaram no aplicativo e se
concretizaram quando a comunicação migrou para fora do Tem
Açúcar?, no caso, o Whatsapp.
Foi tranquilo. Eu já tinha pego também o telefone do
Whatsapp, que a gente tinha vários assuntos em comum de
designer. E até troquei uma ideia para ver se ele podia me indicar alguns
clientes, que ele trabalhava numa empresa. E aí eu fiquei com o telefone
dele pessoal, e acabou que comecei a tratar tudo pelo Whatsapp, e não pelo
aplicativo. Foi mais fácil (entrevistada I, 36, Designer, Icaraí).
Outra tendência entre os usuários é o agendamento da troca em um local público,
normalmente nas proximidades da residência de quem está doando ou emprestando,
ou ainda a prática de deixar ou buscar o objeto desejado na portaria de quem o
está cedendo. Importante notar que, na maior parte das vezes, a troca acontece
presencialmente, e o encontro poucas vezes se dá na casa de quem empresta ou
doa.
A gente marcou o dia, e essa mora bem mais perto de mim, ela mora no Centro
também. A gente marcou um dia, passei na portaria, ela tava passeando com o
cachorro e eu digo: “ah, tá aqui”. Pegou, me entregou o skate e “oi, muito
obrigada, tchau, smack smack e beijos” (entrevistada C, 34, Pedagoga, Bairro
de Fátima).
A troca por meio de aplicativos depende de confiança. As entrevistas realizadas
mostram que, nesse sentido, a maioria esmagadora dos usuários confiaram nas
avaliações do aplicativo e se fiaram nelas para materializar a troca com a outra
pessoa. Apenas uma das entrevistadas afirmou ter ido buscar mais informações,
pesquisando sobre a pessoa no Facebook. Neste caso, verificar
se há amigos em comum nessa rede social ajudou a atenuar a desconfiança:
Ah, olhei Facebook. É uma segurançazinha. Tinham amigos em comum, um era
designer. Aí eu falei: “então tá tranquilo”. Mas também marquei de encontrar
na rua. Acho que é muito mais tranquilo do que receber em casa, que a gente
ainda tem esse receio (entrevistada I, 36, Designer, Icaraí).
Além disso, quando perguntados se realizariam trocas com qualquer pessoa, 5/9 dos
entrevistados disseram que não, afirmando que dependeriam dos comentários e
avaliações no perfil da outra pessoa dentro do aplicativo Tem
Açúcar? Nesse sentido, foi possível perceber o quanto usuários
recentes e sem avaliação representam um risco maior e geram menos confiança para
a transação. Esses usuários acabam tendo chances menores de êxito e dependem do
desejo da outra pessoa em criar confiança a partir de conversas fora do
aplicativo e busca de informações em redes sociais. A partir das respostas foi
possível notar ainda a importância da proximidade geográfica e que este seria um
fator impeditivo de troca com qualquer pessoa. Por outro lado, quatro pessoas
disseram que não teriam qualquer limite e que trocariam com qualquer pessoa:
É, acho que sim. Agora que você me perguntou isso eu tô me achando um pouco
inconsequente. Normalmente eu olho só as avaliações da pessoa, só pra eu ver
se ela... mas às vezes a pessoa também é nova, então não tem avaliação
nenhuma. Então vai muito do papo que eu tô tendo com a pessoa também
(entrevistada E, 24, Publicitária, Leblon).
Ah, se for muito longe, se não tiver nenhuma avaliação ou se tiver avaliações
ruins ou se for alguma coisa assim... não sei. Eu acho que basicamente isso,
que eu não sinta que posso confiar, entendeu? (entrevistada A, 34, Designer,
Catete).
Conforme já mencionado, a confiança é um fator elementar para as trocas
analisadas na presente pesquisa. Nesse sentido, as avaliações ganham peso
relevante no aplicativo, pois manifestam a reputação de cada usuário. Assim,
julgou-se relevante perguntar aos entrevistados o que consideram no momento de
avaliar um usuário. As respostas revelaram que pontualidade, compromisso e
disponibilidade para comunicação são os três elementos mais considerados. Foram
citados também o zelo pelo objeto, a simpatia na abordagem e a honestidade:
Compromisso com a pessoa. Diz que vai devolver num prazo X. É o compromisso
dela mesmo. Você tá fazendo algo bom, né. Mas você também espera que a
pessoa possa pelo menos ter esse compromisso de devolver ou dar uma
satisfação. Uma coisa que eu sempre tive pelo aplicativo. E o zelo também
pelo seu objeto, né. Devolver da mesma forma que pegou emprestado. Acho que
isso também é bem importante (entrevistado H, 32, Administrador, Flamengo).
Quando perguntados sobre o que achavam que outros usuários consideram quando
avaliam, todos os entrevistados citaram os mesmos elementos mencionados acima.
Quando perguntados se havia um limite do que emprestar, todos os 9 usuários
entrevistados disseram que sim, afirmando que dificilmente emprestariam objetos
pessoais, com valor afetivo e valores financeiros considerados altos e objetos
de uso profissional ou frágeis. Isto é, não estariam dispostos a emprestar
coisas pessoais insubstituíveis, emocional ou financeiramente. Ainda que todos
os entrevistados afirmem que existe um limite do que emprestar, os objetos dados
como exemplos possuem claramente pesos e valores diferentes, especialmente no
que se refere àquilo que se chama de valor financeiro, conceito naturalmente
relativo e subjetivo.
Bom, tem, tem limite. Mas eu não sei se...eu acho que as coisas que eu não
emprestaria pelo aplicativo eu não emprestaria de jeito nenhum, sabe? Não
sei, por exemplo, eu emprestei a lente da minha câmera. Eu não sei se eu
emprestaria a câmera inteira, sabe? Mas eu também não sei se eu emprestaria
ela para alguém que me pedisse normalmente, sem ser pelo aplicativo. E
coisas mais pessoais. Por exemplo, quando emprestei a máquina do cartão. Eu
tenho ela há pouco tempo e também não sabia usar. Sabe, eu fiquei um pouco
insegura. Emprestei, mas fiquei um pouco insegura se tinha algum dado
naquilo, sabe? Depois eu vi que não. A própria pessoa me explicou, me
ajudou, me ensinou a mexer em outras coisas no aplicativo dela depois. Mas
eu fiquei um pouco insegura. Então, assim, coisas que possam ter meus dados
eu acho que eu não emprestaria (entrevistada B, 37, Designer, Botafogo).
Ah, por exemplo, uma pessoa tava pedindo objetos pra fazer uma festa
mexicana, temática. Eu tenho uma caveira mexicana, mas a minha amiga trouxe,
essa caveira mexicana é do México, sabe? Eu não vou emprestar porque pode
quebrar, entendeu? Então assim, essas coisas muito emocionais ou de quebrar,
aí não (entrevistada F, 38, Empreendedora, Glória).
Aproximadamente 7/9 dos entrevistados relataram que sim, as trocas realizadas
acabaram por gerar relacionamento externo, seja se tornando uma amizade de redes
sociais (Facebook e Instagram foram os mais
mencionados), seja se tornando um contato para dicas de viagem ou oportunidades
profissionais, através de comunicação via Whatsapp. Mesmo que
intermitentes ou ocasionais, foi possível notar que a maior parte das trocas
acabaram de fato aproximando os usuários no “off-line”, gerando assim uma
proximidade maior entre vizinhos.
Ah sim, hoje a gente é amigo de rede social. A gente comenta às vezes stories
no Instagram, acompanha viagem. Ele tava mês passado no Pará, achei legal.
Pará não, no Norte do Brasil, né. E em outros lugares por lá também. E eu
achei interessante a viagem dele, o roteiro que ele fez. Ele foi postando,
aí se eu for para lá eu pego informações com ele (Entrevistada C, 34,
Pedagoga, Bairro de Fátima).
No que se refere aos relatos de reciprocidade, aproximadamente 3/9 das pessoas
entrevistadas receberam ou deram agradecimentos materiais no momento de
receberem de volta, ou de devolverem um objeto, como um souvenir de viagem, um
bolinho ou até mesmo um bilhetinho de agradecimento:
Eu precisei para uma viagem e eu não precisei comprar um mochilão. Aliás, eu
prometi que traria um souvenir pro João, e trouxe (entrevistada C, 34,
Pedagoga, Bairro de Fátima).
Foi uma surpresa muito boa, uma coisa que eu não esperava. Óbvio que eu
esperava agradecimento, mas assim, eu não tinha imaginado que ia ser tão
bonitinho, sabe? Foi quase receber um presente. Achei muito bom
(entrevistada B, 37, Designer, Botafogo).
Aí quando eu recebi de volta, ela ainda me deu um bolinho lá de presente. Eu
achei fofo e eu fiquei “ai, que bom que a gente consegue emprestar as coisas
e sair um pouco da nossa zona de conforto mesmo (entrevistada E, 24,
Publicitária, Leblon).
Finalmente, quando perguntados sobre a principal função, a principal entrega do
aplicativo em questão, os entrevistados concordaram que o Tem
Açúcar? ajuda a comprar menos e ao mesmo tempo facilita a
aproximação das pessoas na vida real, promovendo, assim, um sentido de
comunidade. Inserido em um contexto de economia colaborativa, entende-se que o
aplicativo Tem Açúcar? atrai usuários alinhados com essa
realidade. Revelou-se que os entrevistados são entusiastas da economia
colaborativa, que a consideram relevante e fundamental para gerar impacto social
positivo, além de promover um consumo mais consciente.
Eu acho que é essa união da comunidade, dos vizinhos, sabe? Eu acho que é
trabalhar a confiança entre as pessoas. A gente não trabalha isso, né? Não
pode confiar muito, não pode pedir ajuda para o outro, não pode contar com o
outro. E a principal entrega [do aplicativo] pra mim seria essa, essa
experiência (entrevistada F, 38, Empreendedora, Glória).
Conclusões
O propósito do aplicativo Tem Açúcar? revelou atrair o engajamento
de usuários que, de fato, justificam sua motivação em nome da redução do consumo e
da promoção de colaboração e confiança entre vizinhos. Além da defesa desses
valores, e da própria adesão ao aplicativo, o princípio da dádiva se viu presente em
situações específicas. Uma delas é a maior motivação que alguns usuários relataram
em emprestar do que em pedir emprestado, revelando a orientação de comportamentos
desinteressados e não utilitaristas.
Os princípios da dádiva também se fazem presentes nos gestos daqueles que criam
formas de retribuir o empréstimo que lhes foi feito, como com dicas de viagem,
contatos profissionais, convites para eventos sociais, bilhetes de agradecimento,
roteiros de turismo, um bolinho, uma bandeira ou ainda um livro.
Em suma, é adequado afirmar que a reciprocidade é presente nas transações promovidas
a partir do aplicativo Tem Açúcar? e, embora não relatada, a
sensação de terem contraído uma “dívida” ou uma obrigação por retribuir de modo
simultaneamente voluntário e obrigatório, parece fazer parte das interações.
Os usuários afirmam que dificilmente emprestariam objetos pessoais, com valor afetivo
e financeiro altos e objetos de uso profissional ou frágeis, isto é, não estariam
dispostos a emprestar coisas pessoais insubstituíveis, seja emocionalmente, seja
financeiramente. Apesar disso, foi ampla a gama de produtos narrados como tendo
circulado por meio do aplicativo: mochila, pneu, lente de câmera, máquina de cartão,
itens para gatos, livros de design, fritadeira, equipamento de mergulho, mesa de
costura, entre outros.
A confiança é um fator essencial para a materialização das trocas e sua construção é
dependente definitivamente de dois elementos: reputação do usuário e comentários
deixados por terceiros no perfil do usuário. Esses dois elementos são decisivos para
as tomadas de decisão que acompanham uma troca, doação ou empréstimo e influenciam
também a logística do encontro para a materialização da transação, seja ela da
natureza que for. Isso significa que encontros para transação podem ser agendados em
locais públicos e trocas podem ser feitas sem que os usuários sequer se encontrem, a
depender dos dois elementos supracitados e da consequente confiança de um usuário em
outro.
Com relação à formação de laços entre os usuários, é preciso situar o aplicativo
dentro das modalidades interativas que marcam a sociedade contemporânea, já
definidas por suas “conexões em rede” (Castells, 1998) e por sua natureza “líquida”
(Bauman, 1998) -em detrimento de vínculos
fortes, presenciais e estáveis. Assim, sob esse paradigma, o aplicativo Tem
Açúcar? pode ser entendido como um dispositivo que, de fato, engendra
laços sociais, laços esses reveladores da natureza própria de seu tempo: frágeis,
virtuais e transitórios.
Para pensar criticamente no potencial de ação do aplicativo no Rio de Janeiro, não se
pode deixar de lado as limitações dadas pelas próprias condições de operar o
dispositivo, que excluem uma parte dos habitantes da cidade: possuir aparelho
celular, com acesso à Internet, ter domínio das instruções do Tem
Açúcar? e dos demais aplicativos indiretamente associados a ele, como
Whatsapp e Facebook. Sob essa perspectiva, é
possível qualificar o perfil dos usuários pesquisados como seletivo, já que
apresentam elevada escolarização e habitam em bairros privilegiados. A localização,
por certo, é um fator que tanto potencializa quanto limita os efeitos do aplicativo,
já que a proximidade geográfica é condição sine qua non das
interações geradas por meio dele.
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PAAKAT: Revista de Tecnología y Sociedad, año 14, número 27, septiembre 2024- febrero de 2025, es una publicación electrónica semestral editada por la Universidad de Guadalajara, a través de Centro Universitario de Guadalajara. Calle Guanajuato. Núm. 1045; Guadalajara, Jalisco, México. Tels. 33 31 34 22 22. Dirección electrónica: http://www.udgvirtual.udg.mx/paakat/index.php/paakat. Correo electrónico: paakat@udgvirtual.udg.mx. Editor responsable: Dr. Lázaro Marcos Chávez Aceves. Número de Reserva de Derechos al Uso Exclusivo del Título de la versión electrónica: 04-2011-111117155600-203, e-ISSN: 2007-3607, otorgados por el Instituto Nacional del Derecho de Autor. Responsable de la última actualización de este número: Centro Universitario de Guadalajara, Lázaro Marcos Chávez Aceves. Fecha de la última modificación: 1 de septiembre de 2024.
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